Reflexões da professora Ynah de Souza Nascimento (UFPE) acerca dos comentários críticos feitos ao artigo do professor Gustavo Alonso, publicado na Folha de São Paulo, no dia 5 de novembro de 2021, “Marília Mendonça, rainha da sofrência, não soube o que é fracasso.
Já não causam espanto as afirmações de que o brasileiro não sabe ler. Os resultados da 5ª edição da pesquisa “Retratos do Brasil”, apontam que, de 2015 a 2019, a porcentagem de leitores no Brasil caiu de 56% para 52% e que a maior queda nesse percentual aconteceu entre as pessoas com o ensino superior – passando de 82% em 2015 para 68% em 2019. Ao mesmo tempo, a internet e o WhatsApp ganharam espaço entre as atividades preferidas no tempo livre de todos os entrevistados, leitores e não leitores. Em 2015, do total de entrevistados, 47% disseram usar a internet no tempo livre, enquanto em 2019 esse percentual aumentou para 66%, incluindo-se aí o WhatsApp[1].
Vale destacar que o foco da pesquisa “Retratos do Brasil” é o acesso dos brasileiros aos livros. Entretanto, o cenário da leitura vem se alterando na contemporaneidade com “a integração de semioses, o hipertexto, a garantia de um espaço para a autoria e para a interação, a circulação de discursos polifônicos num mesmo ciberespaço, com a distância de um clique, desenham novas práticas de letramento na hipermídia” (ROJO, 2013). Essa nova configuração de textos da contemporaneidade exige novas competências/capacidades de leitura para que se possa participar dessas novas práticas de letramento, considerando-se que essa convergência de mídias
é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento. (JENKIS, 2009, p. 43)
Traduzindo para uma linguagem mais acessível a você, leitor: os textos não são mais os mesmos daqueles que circulavam antes da Internet, nem podem ser processados do mesmo jeito de antes porque quem determina a lógica da convergência das mídias é a indústria midiática. Muitas vezes, a seleção e publicação de um texto nas mídias, ou a disseminação de um comentário feito sobre esse texto, obedece a essa indústria[2].
Não constitui objetivo desse meu texto estabelecer “verdades” ou “denunciar” interpretações equivocadas a respeito de texto algum, até porque isso é impossível, considerando-se que, na contemporaneidade, a compreensão leitora não se limita mais à decodificação do “suposto” conteúdo de um texto, mas representa o resultado de um complexo processo de interação autor-texto-leitor – cada um desses com suas idiossincrasias – situado em um contexto particular de produção e circulação. Se alguma vez você reconstruiu sua compreensão de um livro ao relê-lo, sabe bem o que estou afirmando, cada leitura é uma nova leitura.
Quero destacar que todas as reflexões que aqui compartilho com você, leitor, são de minha inteira responsabilidade e estão assentadas em minha experiência profissional como professora de português licenciada em Letras (UFRJ) e que atua há 45 anos em sala de aula; além disso, incorporo nesse meu texto os conhecimentos que adquiri ao longo da vida acadêmica como especialista em Linguística (UFPE), Mestre em Língua Portuguesa (UFPB) e Doutoranda em Educação (UFPE), com pesquisa sobre a compreensão leitora no espaço escolar. O ponto de partida para essas reflexões surgiu da seguinte constatação: algumas pessoas se declararam ofendidas com o artigo do professor Gustavo Alonso sobre Marília Mendonça sem nem mesmo terem lido o texto, exclusivo para os assinantes da Folha de São Paulo. Acredito que a reação pode ter sido desencadeada pela leitura dos comentários – muitos deles agressivos – de outras pessoas divulgadas nas mídias digitais sobre o artigo.
Evidentemente que os textos da contemporaneidade, por não serem mais os mesmos de ante, vão exigir novas competências/capacidades de leitura, (ROJO, 2013), que considerem a lógica da atual cultura midiática e tecnológica. Nela, espera-se que o leitor não se submeta passivamente aos conteúdos dos textos, mas se assuma como protagonista de sua leitura, acionando um processo complexo de compreensão leitora que considera as novas condições de produção, circulação e compreensão dos textos que circulam nesses novos espaços digitais.
CONCEPÇÕES DE LEITURA
Do que exatamente se trata quando se fala em “leitura”? O “Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa” (2001), fornece 13 entradas lexicais de usos socio-historicamente fixados na língua para o verbete “leitura”, entre elas:
3. ação de tomar conhecimento de um texto escrito, para se distrair ou informar. 7. (fig.) maneira de compreender, de interpretar um texto, uma mensagem, um acontecimento. Ex.: ler nas entrelinhas; os críticos realizaram uma leitura muito limitada do filme. 9. ato de decifrar qualquer notação. Ex.: ler a temperatura em um termômetro, ler uma partitura musical. (HOUAISS, 2001, p. 1739).
De modo resumido, a partir do senso comum, e considerando as expressões verbais como “tomar conhecimento”, “compreender” e “decifrar”, podemos dizer que, a partir do verbete, “ler” significa decodificar algo que, de certo modo, já havia sido inscrito no texto, de modo explícito ou implícito, pelo autor. Essa concepção estava subjacente às famosas perguntas de interpretação do tipo “O que o autor quis dizer?” Se você voltar ao seu tempo de escola vai lembrar que muitas vezes você discordava do gabarito – definido pelo livro didático – mas não conseguia convencer seu professor.
Sobre isso, vale ler a crônica “O que é isso, Ministro Paulo Renato”, de Mário Prata, publicada em 1999 no jornal “O Estado de São Paulo”, que toca nesse ponto nevrálgico das questões de interpretação de texto. Nela, o autor, usando de seu humor habitual, faz crítica às questões de interpretação de um texto seu em uma prova de vestibular para Medicina na Unicamp[3]. Segundo ele, das oito perguntas feitas em forma de múltipla escolha “Eu, que escrevi, que sou o autor, errei as oito”.
Essa concepção de que a leitura constitui uma atividade mecânica de decodificar palavras, ou de extrair sentidos que supostamente estariam prontos no texto, veio se modificando ao longo do tempo, graças às pesquisas na área de Linguística, Psicologia e Linguística Aplicada:
Hoje já se sabe que a leitura é uma atividade complexa, em que o leitor produz sentidos a partir das relações que estabelece entre as informações do texto e seus conhecimentos. Leitura não é apena decodificação, é também compreensão/interpretação e crítica […] (CAFIEIRO, 2014, p. 167)
Assim, diferentemente da abordagem estruturalista em que a tarefa do leitor estava limitada à decodificação do texto, agora cabe a ele superar outro desafio: além da competência sintática, semântica e textual, comprovar uma competência específica da realidade histórico-social refletida pelo texto (LEFFA, 1996; MARCUSCHI, 2008) (grifos meus). Os sujeitos, nessa abordagem, passam a ser vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que – dialogicamente – se constroem e são construídos no texto, através de uma compreensão/interpretação ativa (KATO, 1985; KLEIMAN, 2016). A compreensão/interpretação da leitura implica, assim, em um processo complexo que correlaciona diferentes fatores, entre eles autor/leitor, de um lado, e texto, por outro (KOCH & ELIAS, 2006), além do domínio das competências sintática, semântica e textual.
A partir daí, que desafio precisa superar o leitor competente? O primeiro é compreender a totalidade do texto, articulando suas palavras, frases, períodos, ou mesmo unidades maiores. Qual o risco maior que precisa ser evitado? Evitar os falseamentos e extrapolações, isto é, os horizontes indevido e problemático (MARCUSCHI, 2008).
De acordo com Marcuschi (2008), a compreensão abarca cinco horizontes possíveis: (1) a falta de horizonte, quando o leitor repete ou copia o que está dito no texto, em uma atividade de mera repetição; (2) horizonte mínimo, quando o leitor parafraseia o que está dito no texto, e sua interferência é mínima; (3) horizonte máximo, quando o leitor considera, no processo de compreensão, as inferências máximas, a partir da reunião de informações textuais e não textuais, e exercitando seu raciocínio lógico, prático, estético, crítico, etc; (4) horizonte problemático, quando o leitor extrapola as informações contidas no texto a partir da inserção de conhecimentos bem pessoais, realizando um leitura de “caráter idiossincrático”; (5) horizonte indevido, ou horizonte da leitura indevida ou proibida; segundo o autor, essa é a área “da leitura errada”.
Embora longa, vale a citação do linguista, professor por muitos anos da UFPE, e com uma vasta e reconhecida produção na área de linguagem. Segundo ele, imaginemos um texto publicado no Diário de Pernambuco:
“Todas as músicas tocadas e cantadas no carnaval pernambucano de 1996 ficaram entre o frevo e o maracatu numa demonstração inequívoca da supremacia da cultura local”. Para Marcuschi, o leitor que criticasse o texto porque ele ignorou a importância do “chorinho” e do “axé music”, estaria fazendo uma leitura errada. E se esse leitor tivesse lido o texto em uma seção de variedades da revista Veja, poderia achar que o autor quis dar a entender, de maneira irônica, que em Pernambuco não há só frevo e maracatu no carnaval, o que colocaria a leitura no que o linguista chama de horizonte problemático (MARCUSCHI, 2008, p. 259).
LEITURA ERRADA?
[…] Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci
Decorei, copiei, memorizei, mas não entendi. […] Estudo errado, Gabriel Pensador
Li vários comentários ofensivos (e desrespeitosos também) ao texto do professor Gustavo Alonso. Parece que toda a “sofrência” pela morte da artista foi canalizada para dois trechos do artigo, que é composto por vinte parágrafos. Com o objetivo de avaliar que horizonte os leitores expressaram em sua leitura (MARCUSCHI, 2008, pp. 258–259), escolhi comentar o artigo “Texto machista e gordofóbico da Folha sobre Marília Mendonça gera repúdio[4]” (grifos meus), escrito por Henrique Rodrigues e publicado no portal revistaforum.com.br. Na onda das demais críticas que estão circulando pelas redes sociais, o jornalista avalia o texto (e o professor, por tabela) como “machista” e “gordofóbico”.
Para avaliar o horizonte de leitura do autor desse artigo, começo a análise pelo seu título. E você, leitor, vai me ajudar nisso. Lembra das aulas de gramática dos seus tempos de escola sobre a função dos adjetivos? Eles qualificam o substantivo. No título, os adjetivos “machista” e “gordofóbico” foram selecionados pelo autor para caracterizar o texto escrito pelo professor. Nesse caso, título indica sim o tema do artigo, mas, além disso, funciona como um convite para que o leitor – assim como o jornalista – acredite no que está sendo dito. Afinal, o autor é um jornalista, tem espaço para publicar e divulgar suas ideias e, provavelmente, leu o artigo do professor Gustavo Alonso. É como se o leitor pensasse: o autor leu e tem credibilidade para afirmar o que afirma, quem sou eu para duvidar. Claro que o jornalista, caso seja confrontado, poderia argumentar “mas eu elogio o artigo”. E é verdade.
Ao falar sobre a meteórica e avassaladora carreira da Rainha da Sofrência, ainda que na maior parte do artigo de maneira elogiosa, o autor da coluna se expressa de forma machista e gordofóbica em determinados trechos da publicação (grifos meus)
Um leitor que não se contenta com a falta de horizonte, ou com o horizonte mínimo de leitura, poderia perceber que esse único comentário elogioso “ainda que na maior parte do artigo”, é feito em uma oração intercalada e iniciada pela expressão “ainda que”, uma locução conjuncional que introduz oração subordinada adverbial concessiva, exprimindo oposição ou restrição ao que é dito na frase subordinante. Para você que decorou, mas não aprendeu – como na letra da música de Gabriel Pensador -, eu explico: o jornalista usa um recurso sintático como uma estratégia “inteligente” para enfraquecer a crítica positiva e fortalecer a negativa. Ao mesmo tempo, ele se defender das possíveis críticas: caso fossem feitas, o jornalista argumentaria que reconhece a maneira elogiosa com que o artigo trata a artista.
É preciso que se reconheça: o jornalista sabe empregar adequadamente estratégias para disseminar seu tom crítico ao artigo. Nos dois últimos parágrafos, como recurso final de argumentação para sustentar sua crítica, o jornalista se vale do comentário do ator e parlamentar Alexandre Frota que não perdeu a oportunidade de surfar nas ondas de críticas ao artigo de Gustavo Alonso.
Que comportamento se espera de um leitor que não se contenta com a falta de horizonte ou com o horizonte mínimo de leitura? Eu apontaria, no mínimo, dois. Do ponto de vista linguístico, análise dos adjetivos escolhidos pelo jornalista: “machista e recheado de gordofobia” para o substantivo “artigo”; “indignado” para avaliar a fala do parlamentar. Do ponto de vista da autoridade, isto é, da inclusão da citação de um especialista, autoridade em determinado assunto, para justificar uma conclusão – pelo menos para mim, a autoridade a considerar é o professor cuja credibilidade no espaço da academia e na área de música sertaneja, e não um ser cuja atuação tem se mostrado comprovadamente controversa no cenário brasileiro.
O ator e deputado federal Alexandre Frota (PSDB) foi mais um a engrossar o coro dos críticos do artigo machista e recheado de gordofobia.
“Isso não pode ser aceito por nós e por ninguém, isso é covardia. A Folha errou e muito. Alguém leu essa matéria da Folha, deprimente, foi ridículo, os ataques que a Marília Mendonça sofreu, inadmissível em 2021 esse ataque. Preconceito tem que deixar se existir nesse país”, falou indignado o parlamentar.
Que comportamento se espera de um leitor que não se contenta com a falta de horizonte ou com o horizonte mínimo de leitura? Primeiramente ir à fonte original para conhecer o conteúdo do texto, incluindo-se aí a seleção e o emprego das palavras e expressões, principalmente, as que sinalizam o ponto de vista do autor a respeito do tema tratado. Se o leitor consultar o artigo do professor Gustavo Alonso, vai poder identificar, ao longo do artigo, vários trechos de enaltação à artista: “estrela da música nacional”; “Mendonça era a rainha da música brasileira, a rainha da sofrência”; “Mendonça mudou a face da música sertaneja, hoje a grande música popular do Brasil”; “Honra máxima na música brasileira”; “Ela era incontestemente a artista mais reconhecida não só do subgênero (feminejo) mas de toda a música sertaneja há alguns anos”.
Sim, mas você, leitor, pode argumentar: até aqui, eu entendi. Mas o autor diz que a artista não era uma excelente cantora e que era gordinha. E isso está escrito no texto. E essas afirmações foram exatamente o estopim para uma enxurrada de críticas nos mais diferentes espaços sociais, incluindo-se aí xingamentos e vocabulário ofensivo[5].
Nunca foi uma excelente cantora. Seu visual também não era dos mais atraentes para o mercado da música sertaneja, então habituado com pouquíssimas mulheres de sucesso –Paula Fernandes, Cecília (da dupla com Rodolfo), Roberta Miranda, Irmãs Galvão, Inhana (da dupla com Cascatinha).
Marília Mendonça era gordinha e brigava com a balança. Mais recentemente, durante a quarentena, vinha fazendo um regime radical que tinha surpreendido a muitos. Ela se tornava também bela para o mercado. Mas definitivamente não foi isso que o Brasil viu nela.
Que comportamento se espera do leitor diante dessas críticas? Que ele não se contente com a falta de horizonte, nem como o horizonte mínimo de leitura. E que, ao mesmo tempo, não resvale nos horizontes indevido e problemático. Espera-se que o leitor consiga situar sua compreensão no horizonte máximo de leitura. Nesse caso, esse leitor vai precisar se reportar ao texto original do professor Gustavo Alonso, observando principalmente se as informações inseridas compõem uma sequência lógica, composta por movimentos – ou partes – articuladas. Em outras palavras, só se alcança o horizonte máximo de leitura se o texto for compreendido na sua totalidade.
HORIZONTE MÁXIMO DE LEITURA
CARTAZ PARA UMA FEIRA DO LIVRO:
Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem. Mario Quintana (Caderno H)
Talvez você, leitor, consiga se lembrar que, nas suas aulas de redação da escola, o professor repetia, repetia e repetia: todo texto bem escrito precisa ter introdução, desenvolvimento e conclusão. Essas partes – ou movimentos – precisam estar organizadas em parágrafos articulados de forma lógica. Isso significa dizer que a compreensão do horizonte máximo de leitura exige que se compreenda as ideias em relação ao todo do texto. Em outras palavras, se construo minha compreensão a partir de trechos isolados do texto, corro o risco de resvalar nos horizontes indevido e problemático.
São quatro partes ou movimentos em que o artigo do professor Gustavo Alonso pode ser dividido: (1), parágrafos 1-4; (2), parágrafos 5-11; (3), parágrafos de 12-18; (4), parágrafos 19 e 20.
Movimento 1 (parágrafos 1-4): O autor inicia seu texto remetendo às últimas imagens divulgadas nas redes sociais pela própria artista momentos antes da tragédia, que aparece descrita no parágrafo 2, iniciado pelo período “Não era possível cogitar que a realidade seria tão triste”. Tão triste para os fãs (3º parágrafo) e milhares de seguidores (4º parágrafo). Esse movimento 1 é completamente ignorado pelas críticas, que acabam se concentrando nos parágrafos 10 e 11, do movimento 2.
Movimento 2 (parágrafo 5-11): No parágrafo 5, o autor introduz o conceito de “feminejo”, o sertanejo feminino, do qual Marília é a maior representante, tanto que “nunca conheceu o fracasso” (parágrafo 6), o que é raro em artistas iniciantes. E, desde menina, ela sempre se destacou compondo suas músicas (parágrafo 7), e sendo contratada por Wander Oliveira para fazer parte do “batalhão de compositores que trabalham na lógica industrial dos escritórios sertanejos de hoje em dia”, ou como ela bem declarou: “nos tornamos abelhas operárias”. Isso não impediu que a artista sofresse o machismo na área sertaneja (parágrafo 8) quando suas músicas eram fornecidas a vários artistas homens; sua carreira só começou a deslanchar quando começou sua trajetória como cantora, embora, de acordo com o texto, não fosse uma “excelente cantora” nem tivesse “o visual atraente para o mercado da música sertaneja” (grifos meus) (parágrafo 10), ela era “gordinha e brigava com a balança; recentemente Marília fez regime e, segundo o artigo, “ela se tornava também bela para o mercado” (parágrafo 11). E, acrescenta o autor do artigo, em um período de fechamento deste parágrafo: “Mas definitivamente não foi isso que o Brasil viu nela”.
Se o leitor concluir – como o fizeram os autores dos comentários críticos ao texto – que o autor está afirmando apenas que a Marília não era excelente cantora e que era gordinha, essa será uma compreensão localizada no horizonte indevido ou da leitura errada (MARCUSCHI, 2008), talvez justificada por razões pessoais, que não encontram sustentação no texto.
Para compreender corretamente esse trecho – ou qualquer outro do texto – é necessário situar essas informações dentro da sequência do texto. Leitor atento vai perceber que, no parágrafo 9, o autor afirma que a carreira de Marília só passa a ser uma “sucessão de sucessos que a tornaram um fenômeno” quando ela resolve ser cantora. É preciso compreender, então, que a afirmação inicial do parágrafo 10 – “Nunca foi excelente cantora” – dá prosseguimento ao parágrafo 9. Será preciso compreender que a artista não surgiu como cantora – como tantas que o Brasil teve e tem. (Talvez, nesse caso, tivesse sido mais prudente que o autor tivesse deixado essa informação mais evidente no seu texto, talvez com a mudança do tempo verbal para “nunca fora excelente cantora”. Entretanto, o tempo pretérito mais que perfeito – “fora” – está praticamente ausente no português (mesmo na modalidade formal da língua). Compreende-se que a intenção aí era destacar que talvez a própria Marília não se sentisse excelente cantora, ou que ela não estaria incluída no rol das excelentes cantoras brasileiras. Simplesmente ela era uma compositora que resolveu deixar de entregar suas músicas para homens interpretarem.
O parágrafo 10, merece ser lido e analisado com detalhes. Senão vejamos: “Marília Mendonça era gordinha e brigava com a balança. Mais recentemente, durante a quarentena, vinha fazendo um regime radical que tinha surpreendido a muitos. Ela se tornava também bela para o mercado. Mas definitivamente não foi isso que o Brasil viu nela” (grifos meus). Como já afirmamos antes, a compreensão correta exige que o leitor considere a sequência dos períodos e parágrafos do texto. O leitor competente não pode se contentar em destacar como ideia única apenas um dos períodos, ou um dos parágrafos do texto. Desse modo, é possível compreender que, nos períodos 1 e 2 do parágrafo 10, o autor não foi grosseiro nem indelicado; afinal, o professor Gustavo Alonso não disse nada mais nada menos do que, ao longo da carreira, a própria artista afirmara várias vezes, que era gordinha, e que, nos últimos meses conseguira mudar de aparência. Há duas ideias novas, introduzidas nesse parágrafo, e que representam a avaliação positiva que o autor do artigo faz sobre a artista: embora a nova aparência constituísse uma exigência do mercado – afinal, pessoas gordas são passíveis de preconceito social e profissional – para o professor, “definitivamente não foi isso que o Brasil viu nela”. E o que será que nosso país viu nela de tão interessante? O autor vai exatamente descer aos mínimos detalhes disso no próximo movimento.
Desse modo, fica evidente que a acusação de que o texto de Gustavo Alonso é gordofóbico, indica um horizonte indevido para o texto. Basta ler o último período desse parágrafo.
Movimento 3 (parágrafos 12-18): Do meu ponto de vista, esse é o movimento mais robusto do artigo. Nele o autor analisa em detalhes o que o Brasil viu na Marília Mendonça, “longe de ser convencional” (parágrafo 14) e “a cara do Brasil também nas suas contradições”: defendia a autoaceitação, mas era pressionada a mudar sua imagem e emagrecer no contexto do showbusiness; participou brevemente do movimento #EleNão contra Bolsonaro, mas diante das críticas, “tirou o time de campo e pediu desculpas por se pronunciar politicamente”. É, no mínimo, interessante que as críticas agressivas ignorem esse movimento em que o autor do artigo mostra que conhece em detalhes a trajetória da artista, “a cantora que, no começo, parecia feita para ficar nos bastidores. Mas que foi além”. Informação alguma desse parágrafo está incluída nos comentários críticos.
Movimento 4 (parágrafos 19-20): vale aqui reproduzir os dois últimos parágrafos com que o autor fecha seu texto.
Sua morte teve o amargo “suco de Brasil” de 2021, época de aberrações e fake news –enrolações e disse-me-disse da assessoria da cantora (que chegou a afirmar que ela estaria viva no hospital), transmissão ao vivo em rede nacional da retirada dos corpos do avião, programas policiais de fim de tarde especulando causas sem qualquer prova concreta.
Houve até boatos negacionistas de WhatsApp dizendo que o piloto teria se vacinado contra a Covid e por isso passara mal, causando a queda da aeronave. Em sua estupidez, a morte sempre ilustra a vida que vivemos. Marília Mendonça, em sua breve vida, forjou uma nova sensibilidade para a música popular massiva brasileira, tocando milhões de corações. Todo mundo vai sofrer.
Desnecessário dizer que aqui o autor reconhece que vivemos o “suco de Brasil de 2021, época de aberrações e fake-news”. Estaria Gustavo Alonso – como um guru acadêmico – prevendo toda a repercussão negativa de seu artigo? Repercussões que, como pudemos comprovar, ao longo desse texto, sinalizam um horizonte problemático/ou indevido de leitura ao ignorar descaradamente provavelmente um dos textos mais completos a respeito da Marília Mendonça. Troca-se a compreensão dos vinte parágrafos pela leitura superficial de apenas dois. Ignoram, por exemplo, o encerramento poético dos dois últimos períodos do artigo: “Marília Mendonça, em sua breve vida, forjou uma nova sensibilidade para a música popular massiva brasileira, tocando milhões de corações. Todo mundo vai sofrer”. Fica praticamente impossível continuar a acreditar que o objetivo de Gustavo Alonso denegrir a imagem de Marília Mendonça. Todos sofrem com a súbita morte da artista, inclusive ele.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mas é que se agora pra fazer sucesso
Pra vender disco de protesto
Todo mundo tem que reclamar […]. Raul Seixas, “Eu também vou reclamar”.
O objetivo desse texto foi mostrar, através da análise das leituras críticas – e equivocadas – publicadas sobre o texto “Marília Mendonça, rainha da sofrência, não soube o que é fracasso”, do professor Gustavo Alonso, o que significa construir uma leitura adequada de um texto. Procurei responder à seguinte pergunta: Que perspectivas, ou horizontes (MARCUSCHI, 2008), foram adotadas pelos autores desses comentários críticos publicados nesses tempos de “convergência midiática” (JENKIS, 2009)?
Estou considerando que, para ler adequadamente um texto, o leitor deve acionar ativamente todo o processo de comunicação, compreendendo e respondendo de diversas maneiras, assim como, o autor do enunciado, responde a enunciados anteriores. Afinal, a enunciação – unidade de base da língua – é uma réplica do diálogo social, é de natureza socioideológica, não existe fora de um contexto social e prevê sempre a participação simultânea do interlocutor a partir de uma atitude responsiva ativa (BAKHTIN, 1992):
[…] “compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente (…) a compreensão/interpretação é uma forma de diálogo (…) Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra (BAKHTIN, 1992, pp. 131–132).
Assim, se não existe um sentido que esteja lá inscrito no texto, e se a compreensão é resultado de uma atitude responsiva ativa, no meu texto tentei argumentar que, nesse contexto da convergência midiática (JENKIS, 2009), nem sempre a compreensão do leitor, fruto dessa atitude responsiva ativa, corresponde ao que Marcuschi (2008) define como horizonte mínimo ou horizonte máximo de leitura. Nas situações analisadas, pudemos identificar que a compreensão do artigo do professor Gustavo Alonso, manifestadas nas críticas contundentes indicam falta de horizonte, horizonte problemático e/ou indevido da leitura, no âmbito da extrapolação e até de falseamento das ideias veiculadas pelo/no artigo.
A análise dos comentários críticos acerca do artigo do professor Gustavo Alonso permite comprovar as extrapolações e os falseamentos, mas não autoriza conclusões mais gerais a respeito da leitura e compreensão/interpretação desses comentários. Para isso, seriam necessárias mais pesquisas. Entretanto, vale aqui finalizar com o que afirma Bakhtin/Volochínov (1986) sobre a apreensão apreciativa da enunciação de outrem:
Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar o “fundo perceptivo”, é mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior (BAKHTIN & VOLOCHÍNOV, 1986, p. 147)
Assim, na lógica pela qual a indústria midiática opera de acordo a atender o processamento da notícia e do entretenimento, será válido se buscar as possíveis razões para explicar que pessoas se manifestem veementemente contrárias a um texto sem nem mesmo ter lido e analisado o texto na sua totalidade. Talvez seja o caso de se ampliar a epígrafe de Mário Quintana afirmando que:
aqueles que aprendem a ler, e leem, mas só conseguem reproduzir horizontes inadequados ou problemáticos, constituem os verdadeiros analfabetos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. (1992). Genêros do discurso. In Estética da criação verbal (pp. 277–326). Editora Martins Fontes.
BAKHTIN, M., & VOLOCHÍNOV, V. N. (1986). Marxismo e filosofia da linguagem. Hucitec.
CAFIEIRO, D. (2014). Leitura. In M. das G. C. FRADE, Isabel A.S. COSTA VAL, Maria da Graça, BRE GUNCI (Ed.), Glossário CEALE: termos de alfabetização, leitura e escrita para educadores. UFMG/Faculdade de Educação.
HOUAISS, A. (2001). Dicionário Houais de Língua Portuguesa. Objetiva.
JENKIS, H. (2009). Cultura da Convergência. Aleph.
KATO, M. (1985). O aprendizado da leitura. Martins Fontes.
KLEIMAN, A. (2016). Oficina de leitura (16a ed.). Pontes Editores.
KOCH, I., & ELIAS, V. M. (2006). Ler e compreender os sentidos do texto. Contexto.
LEFFA, V. J. (1996). Aspectos da leitura. October, 98.
MARCUSCHI, L. A. (2008). Produção textual, análise de gêneros e compreensão. Parábola Editorial.
ROJO, R. (org). (2013). Escol@ conectada; os multiletramentos e as TICs (R. ROJO (ed.)). Parábola Editorial.
NOTAS DE RODAPÉ
[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-09/brasil-perde-46-milhoes-de-leitores-em-quatro-anos
[2] Sobre o desdobramento dessas ideias, vale assistir à aula de Eduardo Moreira sobre Economia Comportamental, do Instituto Conhecimento Liberta: https://www.youtube.com/watch?v=tL-Bq9jOIFI, acesso em 8.11.2021
[3] https://marioprata.net/cronicas/o-que-e-isso-ministro-paulo-renato/
[4] https://revistaforum.com.br/brasil/texto-machista-gordofobico-folha-marilia-mendonca-repudio/, acesso em 08.11.2021
[5] https://www.brasil247.com/midia/folha-de-s-paulo-apanha-na-internet-apos-texto-sobre-marilia-mendonca-patriarcado-nao-descansa-nem-com-a-mulher-morta